OS CARAS-DE-PALHAÇO

março 20, 2013 at 5:02 am 5 comentários

Pessoal, como alguns devem estar lembrados, faço parte da Oficina de Escritores.

Lá cada um de nós participa de várias atividades literárias para aprimorar as habilidades de escrita. Uma delas é o miniconto, um conto de até 500 palavras para ser escrito em 15 dias a partir de um tema dado. Dessa vez era “cara de palhaço”

Como vocês irão notar, esse conto ficou maior do que o limite permitido, mas de qualquer forma eu quis terminá-lo.

Muitas vezes, quando estou numa atividade literária da OEMHB, tenho mais de uma idéia para escrever um texto. Como não gosto de desperdiçar idéias, usei uma outra versão desse conto, mas leve, para participar da atividade. Logo eu o posto aqui.

Quem comparar esse conto abaixo com o outro a que me referi, vai perceber que se trata de uma mesma história acontecendo em universos diferentes, algo que influencia meus textos por conta de eu ser fã do grande escritor inglês Michael Moorcock (criador de Elric).

E a ilustração que acompanha o conto é do surpreendente Leonardo Laino (esse cara tem futuro!).

Boa leitura!

OS CARAS DE PALHAÇO

Por Rita Maria Felix da Silva

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Arte: Leonardo Laino (2013)

Verão de 2112. Garen Ordonax, tataraneto de Leonard Ordonax, um engenheiro americano que viera para o Brasil na grande imigração de 2022, participava de uma manifestação em São Paulo. O objetivo dos manifestantes era forçar a Humancraft Corporation a aumentar a produção dos Faced Clown ou FC. A HCC se justificava alegando que produzir FCs não era tarefas das mais simples, porém muitos acreditavam, à semelhança de Ordonax, que a pressão contrária dos mais liberais estava inibindo a fabricação de FCs.

No Brasil, os FCs eram mais conhecidos como “Caras-de-Palhaço”. Ordonax tornou-se fascinado por eles, desde que vira um sendo usado num hospital para tratamento de câncer no Rio de Janeiro. Garen estava visitando Carlos, um amigo canceroso em fase terminal. Foi quando os médicos trouxeram um “cara-de-palhaço”. Roupa colorida burlesca, rosto pintado (que a propaganda da HCC explicava tratar-se da pele deles mesmo e não de maquiagem), cabelo verde. Não falava. Movia-se tropegamente empurrado pelos doutores. A face, apesar da pintura cômica, era de uma tristeza quase infinita. Contudo a mídia havia divulgado por dias: aquelas criaturas eram fabricadas em laboratório. Não humanas. Sem sentimentos, pensamentos ou identidade. Incapazes de sentir dor.

Os médicos o trouxeram para perto de Carlos. Com um bisturi amputaram o dedo mínimo direito do “cara-de-palhaço”, que não demonstrou nenhuma reação, e deram para que o paciente o comesse. Depois cuidaram de estancar o ferimento do “cara-de-palhaço” e levaram aquela criatura embora. Foi miraculoso. O amigo de Ordonax recuperou-se completamente.

Dizia-se que a carne dos “caras-de-palhaço” podia curar qualquer doença. É claro que não estavam vivos, mas funcionavam como “simuladores de vida”, por isso quando se removia certas partes deles, que imitavam órgãos humanos, “paravam de funcionar” para sempre e suas capacidades curativas se perdiam.

Ordonax recordava-se de ter visto um deles (no qual só restava a cabeça e o torso) de quem o coração foi dado para que um velhinho cardíaco devorasse. O ancião recuperou-se para uma nova vida. O “cara-de-palhaço” tornou-se imóvel em definitivo e foi descartado. (Algumas pessoas se incomodavam porque os “caras-de-palhaço” sangravam, mas a HCC insistia que não era sangue de verdade, só simulação. Igualmente a população precisou entender que a carne de um “cara-de-palhaço” precisava ser cortada do corpo dele e consumida imediatamente. Estocá-la, congelá-la ou, de qualquer modo, guardá-la faria com que as capacidades curativas também se perdessem).

Quanto ao porquê de eles terem aquela aparência bizarra e a semelhança física com os seres humanos… Bem, comentava-se que Gregory August Freedmann, o fundador e todo-poderoso presidente da Humancraft Corporation, tinha um senso de humor doentio.

Garen Ordonax pensava nisso tudo enquanto voltava de carro pelas ruas da capital paulista. Cansado, devido a todas as atividades da manifestação, em algum instante, distraiu-se e seu automóvel chocou-se com um outro. Sua mente mergulhou numa escuridão interminável.

Despertou no que parecia a cama de um hospital. Estava sozinho no quarto. Teve dificuldade de levantar e de se mover. De pé, pôde se olhar num grande espelho numa parede próxima. No vidro, o rosto de um palhaço olhava para ele. Quis gritar, mas sua voz não funcionava.

Porém o espelho transformou-se num monitor e nele surgiu a imagem de uma linda moça, semelhante às modelos de comercial de TV, que sorria e assim falou:

— “Bem-vindo, FC-FL 2.222. Por favor, esqueça sua antiga vida. Oficialmente, “Garen Ordonax” morreu naquele acidente de carro. Providenciamos todos os documentos que comprovam isso. Temos coisa melhor para te oferecer. O procedimento genético foi um sucesso e você é agora parte de algo mais importante: A FC Corps for Life. E sua missão é salvar vidas. Analisamos uma amostra de seu genótipo, que obtivemos com o hospital, e você nos parecia um candidato perfeito para a transformação em FC. Infelizmente, não mais que 20% dos candidatos efetivamente sobrevive à transformação. Portanto, você é um sortudo! Não é algo maravilhoso? Claro que para evitar choques psicológicos nas pessoas que irá ajudar e reações negativas por parte de nosso público-alvo, introduzimos em seu corpo um biochip que inibe a fala, movimentos e reações. Afinal, nós, da HCC nos importamos com as pessoas. Então, seja bem-vindo à FC Corps for Life e sinta-se feliz pelo serviço louvável e humanitário que, a partir de agora, você irá prestar ao mundo”.

A moça sorriu mais uma vez, a imagem definhou e a tela voltou a ser apenas um espelho. Tecnologia de projeção remota em superfícies vítreas, desenvolvida pela HCC.

Logo em seguida, dois enfermeiros, com o logotipo da Humancraft Corporation, entraram no quarto. Incapaz de reagir, Garen Ordonax nada pôde fazer enquanto arrancavam-lhe o roupão de paciente e substituíam pela roupa de palhaço. Levaram-no a uma ambulância. Deitaram-no numa maca. Um dos enfermeiros disse:

— Você vai a um hospital infantil em São Bernardo do Campo, à ala de crianças em estado terminal. Pense nisso: crianças. E você vai ajudar a salvar muitas delas. Isso não te deixa muito feliz?

Sem poder dizer uma única palavra, interiormente Garen Ordonax gritava em desespero.

FIM

Dedicado a Clint Davisson

EXTRAS:

  • O nome completo de Carlos, amigo de Garen Ordonax citado neste texto, é Carlos Castrogiovanni.
  • O embrião da Humancraft Corporation, um pequeno laboratório de pesquisas em Phoenix, Arizona, EUA, o AMM Lab., também conhecido como AM2 Lab, foi aberto por Gregory August Freedmann em 12 de fevereiro de 2098. AMM vem de Ann Marie Morel, o nome de solteira da mãe de Freedmann, já falecida no tempo de abertura do laboratório. Em uma entrevista ao New York Post, Freedmann declarou que foi a morte de sua mãe, vítima de uma doença incurável, que o motivou a fundar o AM2 Lab e, posteriormente, a Humancraft Corporation, para “salvar vidas e melhorar a existência dos seres humanos”.
  • Garen Ordonax tinha 26 anos quando foi transformado num FC.
  • Genealogia de Garen Ordonax:
  • Tataravô: Leonard Ordonax, que chegou ao Brasil aos 28 anos na Grande Imigração de 2022. Morreu aos aos 70 anos em 2064. Em 2024, nasceu sua única filha, Sharon.
  • Bisavó: Sharon Ordonax, nascida em 2024, falecida em 2074. Em 2042, deu a  luz a  Harry Ordonax.
  • Avô: Harry Ordonax, nascido em 2042. Em 2063 torna-se pai de Jane Marie Ordonax. Morre em 2102.
  • Mãe: Jane Marie Ordonax, nascida em 2063. Em 2086, torna-se mãe de Garen Ordonax, primeiro de seus três filhos.

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O JULGAMENTO DE CHRISTOPHER TYNARD Lothar e a Rosa

5 Comentários Add your own

  • 1. Edgley Silva  |  março 20, 2013 às 11:20 am

    Muito legal, essa coisa sua de continuar as gerações de seus personagens. Com a mesma criatividade e competência, está sempre me agradando com seus belos contos. Parabéns mais uma
    vez !!!

    Responder
  • 2. Adriana "Strix"  |  março 22, 2013 às 8:58 pm

    Creeeeeepy.

    Responder
  • 3. maya  |  março 24, 2013 às 6:48 pm

    Que medo!
    Fantástico, amiga. Seu talento pra criar histórias e personagens é, de fato, estupendo! Beijo grande, Maya, sua fã.

    Responder
  • 4. Gian Celli  |  março 29, 2013 às 2:53 pm

    Oi Rita. Interessante. A mistura de FC com toques de terror é bem legal. Parabéns!

    Responder
  • 5. Ana Lúcia Merege  |  março 29, 2013 às 3:33 pm

    Rita, o texto está muitíssimo bem escrito e a ideia fascinante. Só que o desenvolvimento é previsível para quem lê, está meio “na cara” que os Cara de Palhaço na verdade são humanos e Ordonax vai virar um deles. Por que não pega a excelente história e desenvolve num conto longo com ramificações – e mais surpresas? É uma ideia, não é?

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